Querido G.,
Ontem a noite na festa em que você não pôde estar presente, lá pelas tantas, falamos muito de AMOR.
Amor como uma forma genuina de troca de energia, emoção. Amor como sentimento, como palavra, como asa, como permissão para discordar, mas não desrespeitar.
M. falou que a minha idéia do que era amor, para ele poderia ser traduzida como carinho e que amor era uma coisa diferente. Que a gente amava quase sempre, por essência, esperando algo em troca, mas eu discordei dele e tenho convicção de que as coisas muitas vezes funcionam como funcionam por causa de apenas isso: DO AMOR.
E eu falei também em como o amor era ridículo no bom sentido da palavra e que só quando a gente ama a gente se permite ser ridículo, sem máscaras, sem "quais quais quais", sem uma porrada de coisa que a gente constrói em volta do nosso umbigo, entende?
Então, é por isso que me deu vontade de dividir isso com você, porque você não tava lá e eu queria que você estivesse. Porque você é uma das poucas pessoas que me fazem falta na vida, falta assim para conversar, ouvir, olhar. Falta assim nesta forma ridícula de amor amigo, genuino.
De amar por amar de forma natural e gratuita. Um amor assim leve que como folha de papel voa em direção ao outro e, por isso que eu, agora, com minhas próprias asas estou chegando perto de ti através deste e-mail que nasceu da vontade de ser criança de novo e ter crescido contigo, dividido adolescências e de ter recebido ponta-pés nos jogos de pelada quando eu me metia no meio, porque eu queria experimentar a sensação de ser menino, e você gritava: Sai daí Sachêt!!! você vai machucar os joelhos.
Senti saudade das vezes que eu te implorei para brincar de boneca comigo e você levou o castelo do He-man e o esqueleto para a minha casa e a gente virou o meu quarto do avesso enquanto você atirava raios para exterminar toda a minha coleção de "Querido Pônei". Lembra que a vovó entrou no quarto e deu uma bronca na gente e depois levou na bandeja bolo de chocolate e suco?
Senti hoje saudade de todas as fotos perdidas e da nossa viagem para a Disney. Eu tinha 10 anos e queria ver o "gato da Alice" e a "Cinderela" e você já estava com 16, mais interessado nas garotas da excursão e lá você comprou a sua primeira câmera de filmar e carregava aquele trambolho para tudo quanto era lado e filmava as meninas. E, eu lá, comprando bonecos de pelúcia e chicletes me senti à margem de você, mas mesmo assim, faziamos guerrinha de ketchup e mostarda na lanchonete e ríamos muito. Essa era a única hora em que você se permitia ser criança como eu. Você ainda guarda aquele dragaozinho de pelúcia que eu te dei?
Lembra que mamãe deu todo o meu dinheiro para você e pediu para que você só me desse 20 dólares por dia e você me devolveu todo o dinheiro no avião e deixou que eu gastasse do jeito que eu quisesse porque confiava em mim? - então... essa nossa amizade é tão duradoura e extensa que mesmo que a vida nos guie por caminhos diametralmente opostos, estaremos sempre juntos em pensamento, em essência, em alma.
Mesmo que a vida nos afaste e nos dê sustos a gente pode lembrar sempre das festas americanas, dos discos de vinil e das cartas trocadas. Das viagens para o sítio e daquele tombo de cavalo que eu levei.
Você ficou acordado a noite toda do meu lado falando sem parar para que eu não dormisse. Você suava e estava tão nervoso... e segurava a minha mão e falava : Sachêt, não dorme. E quando eu ameaçava fechar os olhos você virava para mim e dizia: -Ai q vontade de te bater!!! - e, eu repetia: -De mão aberta para não deixar marcas!!! - essa era nossa brincadeira secreta - e eu fiquei um mês de cama com o fêmur quebrado e você ia me visitar todos os dias e até faltava o inglês algumas vezes. E você me levava chocolates e a gente ria a beça juntos e foi ali que eu comecei a escrever e a pensar em ser escritora e você me estimulou, aliás, foi meu primeiro fã e logo depois vc foi morar nos EUA e eu senti tanto a sua falta...
As cartas demoravam a chegar e às vezes eram extraviadas, mas a gente sempre dava um jeito falar ao telefone.
E quando eu morei em Londres você foi me encontrar lá. Você ouvia reggae e eu na fase punk e a gente resolveu não ouvir mais música quando estivéssemos juntos para não brigar? - e aí a gente foi ao parque de Diversões e você segurou a minha mão na roda-gigante enquanto eu tremia de medo e chorava. Tempo bom, aquele...
Aí, logo depois que você voltou eu também voltei e você ganhou seu primeiro carro, ele estava com plástico nos bancos ainda e eu fui a segunda pessoa a andar nele, porque a primeira foi a sua mãe e a gente foi até a Barra e voltou em menos de 20 minutos e depois a gente foi ao cinema? - e quando eu casei que você me ajudou a escolher os móveis e me deu aquele par de cachorros azuis franceses de porcelana que você comprou no antiquário e escreveu no cartão: "É um presente meio brega, mas já que vc pediu... aí vai." - e eu sempre namorei aqueles cachorros, lembra que eu falava deles desde quando mamãe foi a Paris e trouxe um par para ela? - e eu falava que quando tivesse a minha casa eu ia querer um par daqueles e você ... não sei como, depois de tantos anos lembrou disso e me deu de presente!
Que memória. Quantas coisas para lembrar. RELEMBRAR...
Ser ESPECIAL é LUXO de poucas pessoas e você é uma delas, meu amigo de infância, meu irmão de alma, meu querido G.
Sem mais...
Beijos e muitas mas muitas felicidades mesmo,
S.
(*)Todos os nomes foram substituidos por letras que podem ser as iniciais verdadeiras de cada participante ou não, para que a identidade de cada indivíduo ridículo que ama genuinamente fosse preservada, pois há muito poucas pessoas assim neste mundo e talvez eles sejam todos de outro planeta e estejam fazendo pesquisa de campo no Brasil.