4.2.09

Sobre camuflagem e pisões no pé (II)

CARTA 2:


J,

Deixe-me re-explicar a minha profecia, digamos assim, o real é a matéria, o assunto que deveria atrair o nosso olhar, o nosso toque e a nossa escrita. A vida chamada moderna ensina os vivos a não perceberem o real já que ele já tem o seu registro, e neste sentido, a escrita é uma reprise, um fax dos trabalhos dos antepassados. Assim sendo, o desafio [pode, ouviu, não é uma obrigação] é este ensinar aos vivos a olhar o real [seja ele interno ou externo] como se estivesse sendo visto pela primeira vez. Àquela mesma mágica que os tupinambás e aimorés tiveram quando o navegador Américo Vespúcio entrou na Baía do Rio de Janeiro que não era rio e sim um golfo. Na época, um escaler ia puxando a caravela [as velas estavão arriadas, mortas] e o único barulho era dos remos a bater na água, numa espécie de música de Villa Lobos. Gide tem uma bela frase que diz o seguinte "Ninguém se deixa compreender rápido".
Assim o mistério e o ocultamento são as trombetas que atraem os ouvidos longínquos e alheios que andam a passear pelos desertos e planícies deste planeta em extinção chamado Terra.


Tomando outros dois exemplos. A "Ilíada" e "A Divina Comédia". O primeiro tem sua espinha dorsal no retorno de um herói aos braços de sua amada [convenhamos que numa visão machista] é esta linha de Ariadne que conduz os versos, isto é, é o real a centelha do poetisar. Já na "Divina" trata-se do trabalho de resignação, de elaboração de uma paixão não realizada no real mas realizada poeticamente. Uma apoteose do amor espiritual baseado no olhar que o poeta teve ao ver beatriz entrando em uma igreja. Um pouquíssimo que alimenta quinze mil versos. Um dos maiores pleonasmos da literatura [do sonho, segundo Freud] ocidental só comparável ao feito de Sherazade e Gilgamesh.

Minha escrita foi na direção de uma aposta: e se...e se a tua pena se voltasse para a fotografia desses minúsculos
movimentos de beleza no real que produção sairia dessa via? Que metamorfose ocorreria? [Ovídio] Redizendo e recosturando a aposta: se passasse de Cyrano de Bergerac para Ovídio ou Homero que escrita [que dizer o mundo ] sairia? Minha contribuição. Minha curiosidade foi nesta direção. Uma espécie de pedido de salto triplo para uma poeta.

Espero que com essas palavras o meu foco tenha saído do fel [que não houve] para o mel.

ABçs,


G.


RESPOSTA 2:

G,

Escrever sobre o amor não propositada, gratuitamente e na maioria das vezes dentro do âmbito do real, do que estou passando, sentindo, vivenciando, são sentimentos raramente buscados no mundo da imaginação.

Posso dizer com propriedade que a construção de frases não é de nenhuma forma pensada com linearidade e sim, acaba sendo fruto de uma pescaria interna que faz algum sentido quando se percebida a pura essência. Um leve toque de baunilha num pavê de chocolate, por exemplo.

Quando simplesmente a primeira colherada, a que derrete na boca, nos remete à lembranças da infância, da noite anterior, do último Natal e até mesmo (com o perdão da má palavra) de um pé na bunda. Esse sentir, pode ser, para os que nunca experimentaram o pavê da Tia Fulana algo que pode despertar curiosidade, vontade de experimentar ou para os que são sobrinhos da Tia Fulana, um conforto ou o despertar de um prazer nunca antes percebido.

Quando penso (no que você insiste como REAL) vejo que não podemos ser maniqueístas ao ponto de acreditar que essa realidade é única até porque de duas pessoas descrevendo a mesma cena, certamente nascerão textos completamente diferentes, pois, como numa fotografia, os olhares serão sempre diferentes.

Contrate dois fotógrafos para a mesma festa e nunca existirá um click igual ao outro, mesmo que os dois captem a mesma cena. É como atravessar uma rua, pegar um ônibus ou deitar-se – mesmo que as ações façam parte do que chamamos hoje de "rotina" essa mesma "rotina" não pode ser taxada de igual.

Recentemente escrevi um texto e postei no blog e depois recebi o e-mail de uma menina, bem mais nova que eu que disse que consegui descrever com precisão uma situação vivida por ela e na verdade, esta situação estava descrita exatamente da forma que eu vivi, com toda a carga que a situação possa ter. Ela descreveu como incrível até a minha descrição das 14 ligações que dei para um certo celular que no final estava guardado numa gaveta e no que o fato de não ter sido atendido despertou em mim. Ela disse que até o número de ligações tinha sido o mesmo e por isso, insisto que; dirigir, acordar, dormir, fazer amor nunca despertam as mesmas sensações e mesmo que parecidas... nunca são iguais.

Os conflitos e intensidade dos mesmos é variável, assim como o que sentimos pelas pessoas, sejam elas, amigos, conhecidos, namorado, marido, pai , mãe, antepassados, etc.

Por mais que nossa personalidade e olhar sejam modificados ao longo dos anos, acredito que exista alguma memória, como se fôssemos constituídos de um chip ( e não estou falando de ufologia e sim de origem). Nos genes carregamos a história de um povo, duas famílias e percebo que dessa "sopa" surgem letrinhas que vamos ligando com o passar dos anos, nas épocas de despertar. O amadurecer é o que fixa em nós as preferências de um ou de outro por determinada coisa ou não, por isso, uns preferem os Beatniks e outros os Parnasianos ou os modernistas. Uns arriscam-se numa poesia escura outros mergulham no mar. Eu sempre preferi o sol, mesmo quando noite.

Enfim... a noção de real é muito particular de um ou de outro. E o que para um pode parecer minúsculo, para outro pode ser um monstro e por aí vai. As pontas de Iceberg são maiores para os míopes, menores para os que têm hipermetropia e um borrão para os com vista cansada, isso numa comparação tosca e simplista. Uma maneira de enxergar longe da psicanálise e baseada apenas na dificuldade de visualizar e na necessidade de utilizar óculos de correção, mas todas as formas de se ver, ouvir (estar no mundo) representam algo inclassificável e por isso fabuloso.

Da mesma forma, conhecer um trabalho apenas por uma lente, no caso, o blog é uma maneira simplista de se construir uma opinião sólida em cima de um trabalho de uma vida inteira. Faço parte de grupos de poesia, aqui falo de performance, de rua, de palco, tenho meu trabalho com os grupos, o solo, o livro e alguns blogs (o meu e outro onde escrevo aos domingos). Sou Ratos di versos e Madame Kaos. Acordei num Iceberg em 2008 e realizei meu sonho de publicar e T. não mexeu em nenhuma vírgula dos meus poemas e me convida sempre para ser "prato principal" da Ponte. É como não julgar um livro pela capa, entende?

O blog é um laboratório, onde experimento. O livro é a "personificação" dessas experiências e a performance é a vida que os poemas mostram para quem os aprecia ou apenas ouve. É sempre uma troca e sempre bom, mesmo quando ruim. Mesmo quando com medo, mesmo quando o tremor invade e as luzes se apagam.

Gostei do salto triplo. Nunca fui muito atleta, mas sempre me joguei dos abismos e encontrei as molas no fim do penhasco, assim como muitas vezes também, o pote de ouro no final do arco-íris e os duendes, são sim, muito simpáticos.

Abraço,

J.


Da série: papai deveria ter me deixado mais de castigo
ou
estas definitivamente não são cartas de amor.

Um comentário:

Sunflower disse...

É o blog é um laboratório, é pra isso mesmo.

beeeijas!