27.3.09

sobre lembranaças e fotografias (I)


hoje vovó faria 99
quase 100
de qualquer coisa

[de idade, não seria]


de bagagem, vivência, lágrimas e sorrisos;
talvez

99 de "efortil"
de pressão baixa
de pão francês sem miolo
com margarina

[bochechas rosadas]

mãos finas
que retiravam do forno
sem pano nem luva
travessas quentes de inox
recheadas com bolos, pudins
bombocados, queijadinhas

a ponta dos dedos
no forno quente
unhas sempre pintadas
e bem pintadas
de um rosa cintilante

[coragem para aventurar-me
em formas de inox quentes]

herdei dela.
da vovó de joelhos lisos,
poucas rugas, cabelos curtos
um terço do estômago
um rim

e assim ela se foi
sobrevivendo

de uma doença
que só permitia a ela
lembrar do passado

[um passado
que se fazia presente]

aos 88,
só podia saber dos dez, dos 15, 20, 30...
40? nem pensar!
franzia a testa e se enfezava;
já estava velha aos 40.

[para quem estava por perto
como eu, mamãe, vovô...
era infernal!
não sabia mais nossos nomes
misturava as bolas
foi difícil, muito difícil]

-vovó, a senhora tem quantos anos?
40?
- Menos!- ela exclamava.
abria um sorriso aos 35, 33...
quanto menos, melhor.

devem ter sido bons anos

bons como os outros que se seguiram,
as lembranças da vovó
rebobinavam como VHS

quanto mais velha, mais rejuvenecia

minhas memórias
me permitem lembrar de uma cena
no mínimo engraçada

vovó e vovô
cada um numa ponta da mesa
retangular
jogando cartas

ele, se metendo na paciência dela
ela com calma
a passear pelas cartas
corrigindo distrações

matriarca
não me deixou usar calças jeans
até meus nove, dez anos
era coisa de homem - dizia
tentando ensinar para mamãe
maneiras de mulher

preconceitusa a vovó,
mas uma boa mulher.

pensamento de gente antiga
quando tudo era dividido em clubinhos
separado, setorizado

comportamento de quem nasceu
quando o mundo
os costumes
não representavam essa liberdade toda

[gente antiga
é preciso entender
essa gente]

hoje ela faria 99
com o mesmo olhar infantil,
o mesmo brilho nos olhos

joelho lisinho, sorriso maroto
espírito de aventura
e coragem

muita coragem
para enfiar a mão no forno
sem pano nem luva,
sem proteção.

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