4.8.09

sobre lembranças e nuvens - fragmentos


Movimento I
Nuvem - ninho

no pescoço uma cobra.

todas as noites ela a colocava para dormir na caixa-porta-cobras junto com as irmãs. a escolhida, digo, a cobra que saia para passear colocava as fofocas em dia com as outras e passava para todas a agenda do dia seguinte – para que a escolhida do próximo amanhecer já ficasse ciente dos afazeres, das companhias.

para a dona do porta-cobras -ninho eram apenas colares emaranhados numa caixinha de música que trouxe da infância. a única lembrança é que tinha ganho de presente com uns sete, oito anos, talvez do pai ou da avó, não lembrava mais.

eram cobras de pérola, de miçanga, de bolas de gude, douradas, de ouro, prata, aço. com laços, penas, cristais. curtos, longos, de duas voltas ou uma só. não saia de casa sem a cobra enrolada no pescoço.

a menina era vaidosa. seus cabelos castanhos ondulados desciam pelos ombros e quase sempre eram presos em um coque desalinhado. não sabia mais o que era cabelo longo há muito. sempre cultivou as madeixas curtas, bem curtas acima da nuca.

não tem tatuagem na nuca. não tem aliás, nenhuma tatuagem. tem vontade, mas medo de sentir dor e sabe que desmaia ao ver sangue, então, se protege de pagar mico no estúdio de tatuagem. se protege também de ter uma tatuagem torta em alguma parte do corpo. sabe que desmaiará, de dor ou de sangue em algum momento.

por causa dessa fragilidade, para se embelezar, utilizava as cobras. de ouro, de couro, sobrepostas. cobras com pingentes penduradas no pescoço e nos pulsos. muitas cobras. para ela, colares, pulseiras. para os outros, cobras.

a inveja era tanta em cima dela que os olhares e fotografias revelavam a identidade secreta dos ornamentos. cobras. muitas cobras. fulminadas por olhares de inveja.

é uma menina bacana. gosta das pessoas, acredita no ser-humano, enxerga beleza nele e não age de forma a aparecer, ostentar, mas sempre é mal compreendida. nem sempre as pessoas têm a mesma visão de mundo que ela. antes, a percebiam como esnobe, besta, rica, fútil, mas é o contrário de tudo. humana apenas.

sabe dos seus pontos fracos e não julga o dos outros. é julgada o tempo todo. mal interpretada.

cansada daquilo e com medo de ser assaltada, um dia tirou as cobras do pescoço e dos pulsos e nem relógio colocou. sentiu-se mais leve naquela manhã. no dia seguinte nem se lembrou dos assessórios guardados e deixou-os apenas para as fotografias.

sentiu-se bem sem anéis, sem pulseiras, colares, relógio. no pulso só uma fitinha azul do "Senhor do Bonfim" para proteção e ganhou vida.

ainda vaidosa não abre mão, ou melhor, orelhas dos brincos. elas ainda carregam o pesado fardo; brincos e só. nas bochechas maquiagem, nos olhos um pouco de lápis e nos lábios; gloss bem clarinho ou batom nude (cor de boca).

veste- se bem, faz as unhas todas as semanas. ainda faltam 22 semanas para acabar o ano e ainda tem 22 cores para pintar as unhas. faz disso sua religião.

a maldade e os olhares dos outros, varre para baixo de tapete. enxerga a beleza do mundo e só.

nos caderninhos escreve os sentimentos e impressões. na caixinha-de-música – “la vie em rose” muda, as cobras tristes, sem vida, sem respirar – esquecidas na mesa de cabeceira. o relógio sem bateria. consulta as horas
no celular.

Nenhum comentário: