24.7.09

Instalações - Paulo Sandrini

Tenho quatro asas.
E uma vontade imensa de voar.
Mesmo se me cortarem duas asas, posso voar com as outras duas.
E certamente o farão.
Duas asas já seriam de se estranhar.
Imagine quatro.
Nesta comunidade as pessoas não possuem nem mais as pernas.
Quem dirá asas.
Voar é uma dádiva.
Voar com quatro asas seria pra lá de uma dádiva.
Nesta comunidade as pessoas não podem caminhar.
Por isso cortaram minhas asas.
Duas asas.
Mas me sobraram duas.
Quando eu tinha quatro pernas também me cortaram um par.
E quando cortaram, logo me cresceram as duas primeiras asas.
Depois cortaram as outras duas pernas e me crescerem mais duas asas.
Preocupados com as pernas, esqueceram-se de me cortar as asas.
Levaram um tempo cortando apenas as minhas pernas.
Quando perceberam, eu tinha uma dúzia de par de asas.
Foi nesse período que as pernas pararam de crescer.
De tanto serem cortadas, desistiram.
Aí fiquei igual a todos os membros de nossa comunidade.
A não ser pelas asas.
De quatro pernas, fiquei sem nenhuma.
Mas com uma dúzia de asas.Que passaram a ser cortadas, pois minhas pernas já não eram o problema.
Tiraram onze pares de uma vez.
Me sobrou um par.
Acharam que por inaptidão eu não saberia usá-lo para o voo.
Apenas um par de asas, pensaram que era só um problema estético a resolver.
Ou deixar de resolver.
Com o tempo, acreditavam, as asas cairiam por falta de uso.
Eu pensei o mesmo.
Foquei minha atenção no uso dos dois braços a mais que cresceram em mim.
Fiquei com quatro.
Dois pares.
Duas mãos
Vinte dedos.
Quando me cortaram o primeiro par de braços, mais um par de asas surgiu em mim.
Quando cortaram meus últimos dois braços, mais um par de asas.
Fiquei com seis.
Três pares.
Muitas penas.
Nesta comunidade andamos de braços dados com a inveja.
Mas as pessoas desta comunidade não possuem braços.
Por problemas de ordem estética, disseram, foi que cortaram dois pares de asas.
Novamente fiquei com duas.
E poucas penas.
Suficientes para alçar voo.
Mas por falta de confiança permaneci no solo.
As asas ficando pesadas.
Quando as movimentei pela primeira vez, após muitos dias de esforço intenso,
toda a comunidade parou.
Estavam estupefatos.
Como castigo, arrancaram-me as penas, só as penas.
Depois de terem me arrancado braços e asas e pernas.
Só as penas.
Me tornei um espetáculo estético.
Um homem alado com asas sem penas e que não podia voar.
Eu era como uma instalação artística.
Me puseram na praça central e todos me observavam dia e noite como
sendo a obra artística chamada de “Asas inúteis”.
Gente do mundo todo veio ver a instalação que eu havia me tornado.
Acharam até um artista conceitual da comunidade para assinar a obra.
Mas ele não pôde.
Não possuía braços.
Ficou com raiva de não poder assinar e quis acabar a pontapés com a instalação.
Pena: não possuía pernas.
Então chamaram um artista estrangeiro muito conceituado para assinar a obra de arte em praça pública.
Ele veio.
Tinha pernas e braços.
E também asas.
A comunidade o detestou e cortou suas pernas e braços.
Arrancaram-lhe as penas às asas e o colocaram ao meu lado, na praça pública, como se fosse ele também uma instalação.
“Asas inúteis II”, o nome.
Então decidiram que a própria comunidade assinaria as obras de arte.
Seria uma obra coletiva.
Com uma função social.
Com uma função estética.
Com uma função humorística.
Com uma função, talvez a mais celebrada, sádica.
Mas acho mesmo que com uma função masoquista.
A comunidade toda não possuía mãos para assinar.
Decidiram, então, que não seríamos mais, eu e o artista estrangeiro, obras de arte.
Seríamos só, somente, apenas e tão-somente, duas figuras aladas.
Mas sem penas nas asas.
Serviríamos como exemplos para a comunidade toda.
Ficaríamos ali, na praça central, como seres impotentes.
Alados mas sem poder de voo.
Sem pernas.
Sem braços.
Sem penas nas asas.
Impotentes.
Servindo de exemplo para quem pensasse em criar asas.
Para quem pensasse em voar.
No céu, Pegasus passou sobrevoando a nossa comunidade.
Ele até gostaria de descer e beber água no chafariz aqui da praça central.
Acontece que ele não gostava de arte.
Execrava as instalações.
As obras individuais.
(As dos outros).
E sobretudo as coletivas.
Mas, não, ele não era um crítico de arte.
Ele era um escritor.
Um escritor do nosso tempo.
Sim, do nosso tempo.
E ele permaneceria olhando a nossa comunidade sempre do alto.

texto inédito

daqui.


*LINDO LINDO LINDOOOOOOOOO!!!

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